Sociedade pós-covid
Olá! Esta pandemia, para lá de tudo o que nos trouxe em termos de riscos, perigos, medos, alterações súbitas e de “180º” nas nossas vidas, confinamentos e tantas coisas mais, mostrou também que o ser humano tem uma capacidade incrível de se reinventar, de definir no- vos modelos de trabalho, de escolaridade, de transportes, de vida em comum, tudo isto num espaço de tempo minúsculo. Não estou com esta constatação a emitir um juízo de valor em termos de que “tudo isto é terrível e o prenúncio do Apocalipse” ou, pelo contrário, a admitir que daqui sairá um “mundo maravilhoso e sem maldade”. Infelizmente, a condição humana é feita destes polos opostos, que juntam a maior das empatias, solidariedade, amor, compaixão e alegria, com ostracismo, racismo, xenofobia, desprezo, arrogância, narcisismo, cupidez, ódio e violência.
Ainda é cedo para sabermos como vai terminar este “filme”. Falta muito tempo, faltam mui- tos dias, faltam muitos dados, e até, mesmo para lá das fake news e de termos um epidemiologista e um economista encartado em cada um de nós, as dúvidas das autoridades científicas são enormes, bem como o que será o day after em termos de sociedade e de solidez financeira. “Perguntem ao vírus!”, dá vontade de dizer quando se exigem prazos, timings, certezas… quais certezas? Navega-se por cabotagem, ou seja, de porto em porto sem perder a costa de vista.
Ainda estamos, nós, cientistas, a tentar entender como se comporta este vírus, que “manhas” e estratégias ainda vai ele arranjar nesta luta que decidiu fazer contra o ser humano, e já temos de antecipar o futuro porque o sistema económico e financeiro e as outras situações de saúde, de escola, de trabalho e de sociedade o exigem, bem como a nossa saúde mental e o facto de sermos um animal grupal, que funciona melhor com interação com outros e não aguenta muito tempo o eremitismo.
O vírus e as várias faces da moeda
Sabemos que este é um vírus que não respeita fronteiras, que não distingue povos, nem religiões, opções políticas, etnias ou qualquer outra forma de diferenciação social. Sabemos, sim, que o seu objetivo é destruir a espécie humana, e sabemos também que os estilos de vida que nós próprios fabricámos, que acarinhámos, que desenvolvemos – e o mundo que criámos – são em parte um contributo para a situação em que nos encontramos… mas talvez, também, parte da solução.
Quando pensamos que, em média, voam em aviões mais de 20 milhões de pessoas, atravessando em escassas horas o que, para Marco Polo, era uma viagem de uma vida, entendemos melhor a noção de “aldeia global” e de como o coronavírus SARS-2 conseguiu, em escassos dias, galgar fronteiras e fusos horários, estendendo-se a todos os países do mundo e afetando de forma até agora nunca vista à escala planetária, o dia-a-dia das populações dos quatro cantos do mundo. Por outro lado, essa mesma “aldeia global”, através da internet e de todos os meios e redes que esta permite, consegue mostrar fenómenos únicos de solidariedade, proximidade, entreajuda, informação e luta contra a doença… ou, também, as declarações e atitudes mais imbecis e contranatura de tantos dirigentes. São as várias faces da moeda.
Que sociedade emergirá destes “escombros”?
Uma pergunta se coloca, paralelamente às que se referem à crise, às suas origens e às medidas que, atualmente, se vão tomando: que sociedade emergirá destes “escombros”? Voltará tudo ao que era dantes? Um exemplo, porventura partilhado por todos nós: quando vemos imagens de um auditório cheio, seja para ouvir um concerto na Gulbenkian, seja para assistir a uma gala do Got Talent, quando vemos um filme em que as pessoas se abraçam e reúnem em festas – realidades normais e naturais há um par de meses – ficamos estupefactos, e damos connosco a pensar: “São loucos! Eles não veem o perigo que correm?”…, mas estas eram as atitudes e comportamentos naturais no nosso quotidiano há um par de meses, e quem haveria de dizer que, felizmente de um modo tão rápido, nos iríamos habituar a um “novo normal”? Passada esta crise, que terá um fim à vista e que, no momento em que escrevo, tem sido geralmente bem gerida pelas autoridades, instituições e população e, com isso, poupado milhares de internamentos e centenas de mortes, o que ficará? Que sociedade será a portuguesa (e as outras) no “pós-COVID”?
Passada esta crise, que terá um fim à vista e que, no momento em que escrevo, tem sido geralmente bem gerida pelas autoridades, instituições e população e, com isso, poupado milhares de internamentos e centenas de mortes, o que ficará? Que sociedade será a portuguesa (e as outras) no “pós-COVID”?
A forma globalmente ordeira e civilizada como acatamos ordens e regras, num quadro democrático, a maneira como temos sido solidários, com grande espírito de amizade, cooperação, confraternização e civismo; o modo como as famílias se têm preocupado com os diversos elementos que a constituem; os exemplos diários de vizinhos que se organizam, voluntariamente, para dar apoio aos mais desprotegidos ou vulneráveis, como os sem-abrigo ou os ido- sos e doentes, os residentes em instituições, são exemplos que mostram que, dentro de nós, havia e há uma parte boa… muito boa, mesmo, que valerá a pena capitalizar e fazer florir.
“Não acredito que o mundo fique na mesma”
Pessoalmente, não acredito que o mundo fique na mesma, em termos de valores, ideais, práticas e vivências, mesmo não sendo tão ingénuo que creia que a humanidade se redima como numa qualquer Páscoa – e a este propósito não posso deixar de mencionar o extraordinário discurso do Cardeal Tolentino de Mendonça no dia 10 de junho: é para ler, reler e consultar como “manual de instruções de cabeceira”. Todavia, esta clausura a que o vírus nos forçou, apesar de muito maçadora e de grande impacte na economia, mostrou a cada um de nós que há coisas simples, pequeninas (mas não peque- nas em termos de importância), fáceis, muitas delas “a custo zero”, que implicam refletir, contemplar, admirar, criar, conversar, trocar ideias, ouvir música, ler, ver filmes, deambular, passear, observar os outros, comungar mais com a natureza, ou seja, simplificar e tantas coisas mais, coisas que deverão começar a reger a sociedade que se organizará depois da pandemia, num arquétipo de sociedade frugal, intimista, alegre e de profunda sensibilidade, contemplação e reflexão.
“Cresceremos, mudaremos, melhoraremos, iremos aperfeiçoarmo-nos…”
As relações humanas serão, espero, mais pauta- das pelo respeito pelo outro, por o escutar e observar, por colaborar e cooperar, podendo concentrarmo-nos mais na criatividade, na arte, na espiritualidade, aproveitando o que de melhor existe no ser humano, e não, meramente, no trabalho, na ganância, na cupidez, no materialismo e no desprezar e espezinhar os outros, tantas vezes mesmo, não apenas os colegas e vizinhos, mas amigos e familiares.
A palavra “crise” vem do termo grego “krísis”, que significa “momento difícil, de decisão e de mudança súbita”. Teremos, no final de tudo isto, de pegar na etimologia desta palavra e fazer jus a ela. Cresceremos, mudaremos, melhoraremos, iremos aperfeiçoarmo-nos e, em conjunto, criar um novo modelo que, juntamente com a Natureza, os animais, as plantas, o sol, a lua, o céu, o mar, os rios, o campo, as florestas, as flores, numa palavra o Belo, dará origem a um ser humano novo.
“Há muitas coisas no quotidiano que não nos pertencem”
O combate não vai ser fácil e avizinham-se já algumas nuvens negras. Não sejamos ingénuos, repito, mas não deitemos fora algum otimismo. Se muitas das coisas que se vierem a passar não dependem diretamente de nós, há muitas coisas no quotidiano que nos pertencem, em que somos “reis e senhores”. Poderemos substituir progressivamente o sermos “cheios de nós próprios” por sermos, de alguma forma, “pobres dos outros”.
Será que este é um artigo sobre crianças? Agora que me questiono, seguramente acho que sim. Porque o que aqui tentei expressar é para elas. Que elas sejam os verdadeiros herdeiros de um mundo melhor, menos desigual e mais inclusivo, mais justo e com mais e melhores momentos de felicidade. E que nós, adultos, possamos contribuir para a edificação de gerações mais responsáveis, autónomas, frugais e estruturadas naquilo que é, e deve ser, a condição humana.
E que nós, adultos, possamos contribuir para a edificação de gerações mais responsáveis, autónomas, frugais e estruturadas naquilo que é, e deve ser, a condição humana.