Mário Cordeiro
Pediatra

Limites – são maçadores, mas tão indispensáveis e úteis…

Ago 16, 2021 | Mário Cordeiro, Opinião

Imaginemo-nos parados num deserto, sem qualquer estrada marcada no chão. Podemos ir para qualquer lado, o que nos parece conferir uma total liberdade, mas ficaremos sem saber quais os rumos, os melhores traçados, qual até o destino a que o destino nos leva.

Imaginemo-nos parados num deserto, sem qualquer estrada marcada no chão. Podemos ir para qualquer lado, o que nos parece conferir uma total liberdade, mas ficaremos sem saber quais os rumos, os melhores traçados, qual até o destino a que o destino nos leva. O mesmo se diz, aplicando a velha metáfora das margens do rio: se forem demasiado estreitas, o rio será turbulento, apertado, inconformado, saindo do leito de modo caótico e anacrónico com o mínimo aumento do seu caudal, com o mais pequeno aguaceiro; por outro lado, se as margens forem demasiado amplas e sem nenhum leito digno desse nome, o rio espraiar-se-á, porventura manso, mas nunca chegará à foz, que é o seu destino natural. 

Construir esses limites, na medida atempada e acertada, relativamente a tantas e tantas situações, tentando compreender e entrosar tantos e tantos sentimentos, desígnios, objetivos e interesses, de tantas e tantas pessoas de diferentes origens, idades e vontades, é um enorme quebra-cabeças para qualquer pai ou mãe. Ou para qualquer criança, diga-se também, em abono da verdade

Os limites fazem bem e são fundamentais para que o ser humano cresça forte e feliz. Uma criança, que vive sem os limites adequados, não se transforma automaticamente num homem íntegro e livre, como se acreditava há algumas décadas, numa mistura de ingenuidade e ignorância. Pelo contrário, sabe-se que a ausência de limites pode transformar a criança em alguém inconsistente, incoerente, desorientado e dependente. O “Bom Selvagem” de Rousseau, sem aprender a existência de limites, terá mais probabilidades de se tornar mais numa pessoa selvagem do que numa pessoa boa.

Sabe-se que a ausência de limites pode transformar a criança em alguém inconsistente, incoerente, desorientado e dependente.

As crianças a quem é apenas dito «sim», não precisam fazer confrontos, não exercitam a sua inteligência para buscar alternativas, para conseguirem o que querem, nem têm necessidade de lutar para convencer os pais de que estão certas, perdendo a capacidade de argumentar. Tudo é possível a priori e isso a faz fraca, muitas vezes uma tirana em casa e uma covarde fora de casa, pois não teve hipótese de verdadeiramente lutar pelo que queria e que lhe foi impedido. Perde-se em criatividade e em pensamento crítico.

O confronto com os pais prepara a criança para os confrontos da vida. A criança enfrenta os pais para conquistar autonomia. Essa batalha precisa de ser gloriosa, logo os pais têm de ser fortes, senão não tem valor a luta. Primeiro com birras (onde a criança tem de perder para os pais) depois com argumentações (onde pode ganhar muitas vezes, se for inteligente, astucioso e, principalmente, se tiver razão e usar uma boa retórica para a defender). 

A criança e o adolescente vão lutando para se afirmarem, para ganharem autonomia. Quem não passa por este processo, não sabe o que quer e fica dependente da posição dos outros, da colocação destes ou submete-se, não desenvolvendo capacidade de luta, de afirmação de identidade, carecendo de referenciais próprios.

Uma criança nasce no mundo dos instintos e impulsos – o Id, como designou Freud. Precisa depois de um sistema de valores e regras, o Superego, que ajuda a aprender a transformar os impulsos em comportamentos assertivos e a afetos discriminados, sendo o resultado final o que designamos por Ego, que deve ser bem estruturado e equilibrado. Este processo inicia-se à nascença e tem a sua maior expressão nos primeiros anos de vida, prolongando-se depois até à adolescência, paralelamente à estruturação do cérebro e da capacidade de aprendizagem.

Quem não passa por este processo, não sabe o que quer e fica dependente da posição dos outros, da colocação destes ou submete-se, não desenvolvendo capacidade de luta, de afirmação de identidade, carecendo de referenciais próprios.

O ser humano é repleto de sentimentos e desejos, vontades e pulsões: gostar, querer, amar, ser gentil, generoso e tolerante emparelham com odiar, detestar, ter inveja, ciúmes, etc. É por isso fundamental educar com ética e na ética. Atenda-se a que a ética a que me refiro não é a ética antiquada dos velhos chavões, em que se obrigava uma pessoa a ser bom, nobre e sempre ativo e disponível a servir, seguindo os valores da piedade, fidelidade, coragem e racionalidade – esta definição é mais a do Príncipe Encantado das fábulas do que a das pessoas do mundo real. Não ambicionamos, assim, a perfeição do ser humano, que levaria a que fossem reprimidos e aniquilados todos os componentes negativos do temperamento e dos sentimentos, mas o ajudar o ser humano, com os seus defeitos e feitios, com as suas virtudes e talentos, a conhecer, desenvolver e ter gozo no processo de aperfeiçoamento, e a viver a vida segundo normas internas e externas que conduzam a paz interior e a paz relacional com o mundo exterior.

A ética decorre do processo histórico, sendo a nova ética inerente ao estatuto do ser humano dos dias de hoje, muito diferente, na chamada «sociedade ocidental» do que é noutros pontos do planeta ou em momentos históricos e evolutivos anteriores. Fazer reconhecer a uma criança ou a um adolescente a pluralidade do seu temperamento, os seus aspetos positivos e negativos, as suas qualidades e os seus limites, ajuda-o a sentir-se bem consigo próprio, a não ter uma noção errada do que é ou do pode vir a ser, mas a estimular a luta para conseguir atingir aquilo que sabe poder vir a ser.

Houve uma altura em que a «pessoa que se desejava ser» estava a milhas da pessoa comum, levando a frustrações, desinvestimento e desistência. Hoje, defende-se que é entendendo o que é um ser humano, nas suas vertentes de «animal», «pessoa» e «cidadão», que se alcançarão patamares individuais e coletivos de maior tolerância, empatia, solidariedade e humanismo, para lá do sentimento de dever, conhecimento e defesa dos direitos, respeito e responsabilidade pessoal e social. O respeito por si e pelos outros são condições essenciais para um comportamento ético.

O respeito por si e pelos outros são condições essenciais para um comportamento ético.

Não queiramos pois que os nossos filhos sejam os «bonzinhos», mas que sejam bons. Os limites ensinam, por exemplo, que o seu próprio espaço termina quando se invade o espaço do outro. Para cada direito tem de haver um dever, e para cada passo de autonomia haverá um passo de responsabilidade. As opções que se fizerem são para viver o hoje, para projetar o amanhã, e isso só pode ser feito com consciência do momento presente e a aprendizagem com base na experiência passada, seja a do próprio, seja a da comunidade e da espécie humana, em momentos históricos que antecedem o dia atual.

Fala-se cada vez mais, e com razão, de um mundo hedonista, escravo do consumo de bens supérfluos, visando a ostentação e o show-off, numa demonstração de elogio ao narcisismo. Todavia, ao contrário de alguns que creem que apenas arrasando a sociedade de consumo ou renegando os bens materiais se pode ajudar as crianças a crescer e a serem melhores, entendo que é possível e desejável que as crianças tenham o que necessitam, mas que sintam que os bens de consumo, a liberdade individual e a própria felicidade se conquistam e exercem através de condutas éticas e não arrasando os outros ou corrompendo e fintando as regras sociais, tornando indistinguíveis, dada a ausência de limites, os conceitos de Bem e de Mal.