“Hoje à noite vou para a quinta dos meus primos!”.
Quando o António disse isto, com o ar mais natural da vida, os pais entreolharam-se e não deram importância ao assunto. Uma criança de três anos pensar que ia para a quinta de uns primos – mesmo não tendo primos nem quinta –, não era assunto.
“Hoje vou para a quinta dos meus primos!” – repetiu ele, e ato contínuo levantou-se da mesa: “vou fazer a mala”. A mãe admoestou-o por se ter levantado sem pedir licença, e resolveu chamá-lo à razão: “António, acaba de almoçar.”.
Ao contrário do que estariam à espera, o António sentou-se, mas continuou a conversa: “Ajuda-me a fazer a mala, mãe? Vou levar os puzzles do Ruca porque o Zé adora brincar com eles.”.
Zé? Mas que Zé? O António, continuando a comer como se nada fosse, pareceu adivinhar-lhe os pensamentos:
“O Zé… O meu primo, irmão do Rodrigo e da Ana, filhos do tio Carlos”.
O receio apoderou-se dos pais. Já não sabiam se era mais preocupante o discurso desfasado da realidade, se a calma com que o fazia.
“O melhor é levá-lo ao médico. Liga para o pediatra.”.
Ligaram.
Depois de um interrogatório, que passou pela existência de outros sintomas ou da possível ingestão de algum medicamento, a mãe do António teve ocasião de mencionar que o pai partia no dia seguinte, em viagem de negócios, para a Alemanha. Uma estadia de seis dias.
“Calma!” – disse o pediatra – Está a desenvolver os amigos imaginários. É uma defesa. O pai vai partir e para ele, ir também para a quinta inexistente dos primos inexistentes, mas bem reais na cabeça dele, é um mecanismo saudável de lidar com a antecipação de perda.”.
A mãe compreendeu, e no íntimo desejou ter uma quinta e uns primos para colmatar a melancolia que iria sentir pela ausência do marido.
Surgem do nada…
Estas situações parecem surgir de repente, do meio do nada. A primeira ideia é que a criança está a gozar, a provocar. Depois, que está a mentir ou a querer enganar os pais. Finalmente o receio de que seja um sinal de doença, nomeadamente alguma perturbação mental ou psicose. As reações instintivas a qualquer destas hipóteses, não podem, pois, ser muito razoáveis…
Antes dos seis anos é difícil estabelecer uma fronteira clara entre a realidade e a fantasia.
Como nascem, vivem e morrem os amigos imaginários
Uma coisa é certa: eles existem. E existem mesmo, não é apenas na cabeça da criança – ou antes, claro que é, mas a dimensão do fenómeno tem um alcance muito superior a isso.
Antes dos seis anos é difícil estabelecer uma fronteira clara entre a realidade e a fantasia. A fantasia faz parte da vida. É assim que, a partir dos dezoito meses, quando pegamos num boneco ou num urso de peluche e o vemos com carácter humano, começamos a fantasiar os nossos futuros filhos.
Os amigos imaginários costumam “nascer” por volta dos três anos e podem manter-se até aos seis. Com largas variações. Mas sempre com uma constante: existem, e a negação da sua existência é um rude golpe para as crianças.
A função dos amigos imaginários
Não é por acaso que o António se retira para a quinta dos primos quando o pai vai estar ausente. É uma defesa. Se o pai parte, ele também. Como quem diz: “não vou sofrer, não vou sentir a ausência, não vou chorar, porque também eu vou partir – a angústia é para quem fica e não para quem parte!”.
O amigo imaginário é, assim, um escape normal e saudável para o stresse. Quando tem o seu lugar próprio, mas não interfere com os amigos reais – ou seja, quando a criança faz facilmente a clarificação das águas –, não há qualquer motivo para ter receios de que algo de “extraterrestres” se possa estar a passar.
O amigo imaginário é, assim, um escape normal e saudável para o stresse.
Será que é normal ou ficção científica?
É normal! Não prejudica ninguém e é um excelente fator protetor, emocional e psicológico. O aparecimento do amigo imaginário pode ter várias origens, como os casos que relatei atestam. E muitos outros haverá.
O que importa é pensar que faz parte da fantasia e da imaginação, e que a distinção entre este mundo e o da realidade será progressivamente feita – mas com calma, dado que, além de uma potencial confusão entre estes dois mundos, há um caminho de segurança a construir. E que depende de cada um e do contexto em que vive.
O amigo imaginário ajuda a combater os medos. É forte e é amigo (como o seu nome indica), e protege. Não depende de outrem, se não da criança, e esta ainda não desenvolveu a parte de si mesma que pode servir de apoio e contraponto para os seus sentimentos.
Metade das crianças, a partir dos dois anos, tem amigos imaginários. Pelas razões que foram expostas. Até pode ser para colmatar o hiato de um irmão que não têm, ou para poderem ter um amigo que, no fundo, se forja um pouco à sua vontade. Às vezes os amigos imaginários ajudam a experimentar comportamentos que a sua ética diz não serem os melhores. E o amigo sempre pode portar-se mal, dado que tem “as costas largas”.
É recomendável que os pais reflitam sobre o assunto e tentem perceber o que a criança quer expressar através do amigo. O que é que o amigo diz? O que é que ele sente? Quais as suas frustrações? Tudo isso ajudará a entenderem melhor o filho. Nunca se deve ridicularizar a criança ou dizer taxativamente, do alto da nossa arrogância de adultos que “isso é tudo um disparate”. Disparate é não perceber que os amigos imaginários existem mesmo. São imaginários, mas isso não impede que existam.
É recomendável que os pais reflitam sobre o assunto e tentem perceber o que a criança quer expressar através do amigo.
Era uma vez…
As crianças começam a brincar de “era uma vez” ou “faz de conta” desde muito cedo, por volta dos dois anos. Fazem-no imitando frases e atitudes dos adultos, embora a reprodução desses momentos não seja fácil e fuja ao seu controlo. Os amigos imaginários são mais controláveis e estão sempre à mão. Não faltam nem falham, como os adultos, os pais e os irmãos. São (para algumas crianças) um enorme fator protetor, sobretudo em momentos de stresse, de separação, de ausência.
Os amigos imaginários também ajudam a criança a lidar com a solidão – são uma presença de conforto, securizante, que ajuda a lutar contra os medos.
Como lidar com estes amigos?
O amigo imaginário é do foro íntimo da criança e deve ser gerido por ela. Por essa razão não deve ser trazido para a praça pública.
Os pais não devem dar demasiada importância ao assunto, embora o equilíbrio entre não desfazer o mito e não alinhar na novela seja por vezes complicado, mas é a única atitude eficaz e benéfica.
Um dia a criança “matará” o amigo, mas apenas no momento próprio e sem dor.
Estratégias para os pais
A atitude dos pais deve basear-se em:
- Ter a consciência de que é um fenómeno normal;
- Não negar a existência, tipo “tu estás parvinho?”, “o ´não sei quantos´ não existe”. Deve responder-se com “hum”, “sim”, “ainda bem”, “ai sim?” – frases curtas de aprovação mas não demasiadamente intrusivas;
- Não se deve, também, alimentar demasiado, procurando saber todos os pormenores do amigo;
- É bom dizer “um dia era engraçado escreveres isso ou fazeres um livro de desenhos com o teu amigo” – no fundo, uma maneira de aproximar a criança da realidade, mas de um modo soft e sem prazo marcado;
- Os pais têm que sentir que este é um modo extremamente inteligente e criativo de a criança de se defender e criar fatores protetores;
- As crianças podem também usar os amigos como objetos de descarga de sentimentos menos bons, como a raiva ou a angústia;
- As conversas tidas com os amigos imaginários, e toda a relação que têm com eles, deverão fazer com que os pais reflitam um pouco sobre o que os filhos expressam, os seus medos e o que eles, ais, poderão corrigir e apoiar;
- Se os amigos se mantêm após os seis anos, se a relação com eles se torna demasiado intensa fazendo esquecer a realidade, então a ajuda de um psicólogo será bem-vinda.