A espontaneidade com que nascemos faz com que na infância sejamos mais brincalhões. Já em adultos temos de nos autodeterminar para ter uma atitude diferente perante a vida, considera a psicoterapeuta clínica Lourdes Lourenço. Saiba mais sobre o porquê do brincar e como nos faz crescer enquanto seres humanos e enquanto pais.
Qual a importância do brincar para a saúde da criança?
Acho que não é só a saúde da criança. É a educação da humanidade. O brincar é muito sério!
Porquê?
É importante termos essa capacidade ao longo do tempo. Na linguagem adulta o brincar transforma-se em criatividade. Isso está muito ligado ao desenvolvimento da nossa inteligência emocional. Um filho é o maior projeto que um ser humano pode ter na vida. Ter um filho é o que nos mostra o que é o amor incondicional. A nossa capacidade de brincar tem a ver com esta lógica criativa que se estabelece no período da gravidez, como a mãe vai atribuindo características ao seu bebé, inclusive se é um brincalhão ou não!
Como se relacionam o amar e o brincar?
Quanto maior a nossa capacidade de brincar, maior a nossa capacidade de amar. É no estado amoroso que se faz as descobertas do outro, que se dá sentido à experiência do outro. Acho engraçado que na Índia o nascimento é uma festa, toda a família celebra aquele momento. Aliás, o nascimento de uma criança celebra a cultura de um povo.
Como nasce o brincar?
Brincar é poetizar o mundo e transformar os dias em algo diferente. Se uma criança por exemplo aponta para ali, a mãe pode dizer: «Estás a olhar para a luz!» ou então, diz antes assim – «Que linda estrela está ali em cima!». Quando estamos apaixonados, somos capazes de dar outra cor ao céu, porque estamos imbuídos num estado que o outro despertou em nós: a descoberta! O brincar tem a ver com este vínculo amoroso, que é uma construção. E os filhos também conquistam os pais. Não há pais perfeitos, os pais devem ser autênticos. O brincar tem fundamentalmente a ver com a nossa espontaneidade, ter conhecimento dos nossos afetos e dos afetos dos outros. É fundamental haver esse equilíbrio relacional, na vida, no nosso trabalho…
Brincar e ser disciplinado são dois conceitos opostos?
Para mim só há uma regra: a realidade. Não faz sentido disciplinar, porque a realidade disciplina-nos. Acho que a disciplina antecipa a capacidade do outro resolver o problema. E muitas vezes a disciplina toma o lugar do afeto. Por exemplo, «não podes fazer isso», «Porquê?», «Porque não gosto e como gostas de mim, tens de me respeitar!». O resultado é que as pessoas tornam-se disciplinadas, mas com um profundo desrespeito pelo outro e por si próprias.
As pessoas hoje em dia são demasiado sérias?
Acho que tudo isto está muito ligado ao facto de que o adulto não brincou na sua infância e então não consegue ser espontâneo! As estruturas (como os infantários, entre outras) são muito disciplinadas. Tem de haver a possibilidade de sonhar e tentar fazer diferente. O brincar é tão importante que vai refletir a forma como nós, adultos, trabalhamos. Não é por acaso que hoje em dia há mais open spaces: as pessoas podem circular, podem olhar.
Explorar, sonhar, brincar, são comportamentos que potenciam também a criatividade.
Uma ideia que eu penso que está muito associada ao brincar é o desenvolver a agressividade. Não podemos ser criativos se não tivermos dois lados da balança: o amor e o ódio. É muito importante na vida saber-se quem amamos e quem odiamos, ter «inimigos de estimação»! Muitas vezes as crianças têm a necessidade de se zangar no final do dia porque na escola não se podem levantar, não se podem portar mal. Mas “o portar mal” está associado à criação, à inovação e à exploração, não temos de nos portar todos da mesma maneira.
A sociedade não promove as brincadeiras?
Exatamente! O brincar tem a ver com o podermos exprimir emocionalmente uma gana de afetos e da afetividade. As crianças têm uma grande urgência em brincar e nós, adultos, quando brincamos sentimos imenso prazer. E é por isso que muita gente tem medo de brincar: foram pessoas tão reprimidas na sua espontaneidade afetiva, que desaprenderam essa capacidade.
A nossa capacidade de brincar tem a ver com esta lógica criativa que se estabelece no período da gravidez, como a mãe vai atribuindo características ao seu bebé, inclusive se é um brincalhão ou não!
De onde vem a espontaneidade afetiva de que fala?
Nós somos curiosos por natureza, com a descoberta do mundo, com a descoberta do outro! A natureza tem a ver com os nossos cinco sentidos e o bebé convida os pais para cheirar as coisas, olhar, vê-las de forma diferente. É nos primeiros dezoito meses de vida que desenvolvemos a nossa capacidade de amar no sentido de lançar as sementes, ao mesmo tempo que se dá o início do afastamento do bebé em relação à mãe quando começa a andar, a tornar-se mais autónomo e atento ao mundo à sua volta.
Estamos biologicamente preparados para esse afastamento?
Nos primeiros tempos tudo gira em torno da sobrevivência do bebé (“tenho de dar leite ao meu filho para crescer!”). Mas depois a mãe tem que o deixar crescer como pessoa, como ser humano, que é diferente de si. Aliás, somos a espécie animal que passa mais tempo com os pais até atingir a maturidade. Costumo dizer que até à adolescência os filhos precisam dos pais, aos 18 anos isso já passou à história, vão à sua vida! (risos)
O que é necessário para brincar e para amar em simultâneo?
É preciso estarmos disponíveis emocionalmente, pois brincar é muito exigente. Uma das coisas que gosto de fazer com os meus filhos é ler-lhes histórias de manhã. É impressionante que passado um tempo vão perguntando coisas sobre a história! Podemos adaptar aquilo que nos dá mais prazer, à nossa maneira de ser. É tão interessante sair de casa para ir trabalhar com as questões que os meus filhos me colocaram acerca da vida, das relações, dos momentos… É preciso criar momentos relacionais com os filhos! De cada momento pode nascer a descoberta de algo novo.
Como podem ser criadas as brincadeiras com os filhos?
O tempo fulcral de aprendizagem da criança é de vinte minutos (se forem mais velhos, 45 minutos). É impressionante como, depois daquele tempo em que estão a brincar, vão eles brincar sozinhos e reinventar a brincadeira. De facto, as crianças precisam deste investimento afectivo para haver a capacidade de brincar. Se não estamos ligados afectivamente não criamos, imitamos!
Qual a grande diferença entre brincar e imitar?
A maior parte das pessoas hoje em dia imita, não brinca. O brincar inventa-se! Brincar funda-nos na nossa essência de ser humano, a nossa capacidade de respeitar o outro, a nossa capacidade de desenvolver um lado mais criativo. Se no local de trabalho queremos mudar o estado das coisas, temos de brincar!
Porquê?
Porque conseguimos uma alteração do estado emocional das pessoas. O que a nossa sociedade nos obriga é que sejamos funcionais e então não temos prazer naquilo que fazemos. Hoje vivemos numa sociedade narcísica, em que temos de ter sucesso…
Os pais têm pouco tempo para brincar com os filhos. Que conselhos lhes pode dar?
Não acho que os pais não tenham tempo para estar com os filhos. O tempo é a nossa vontade! O que penso é que brincar remete para nos próprios. As pessoas têm feridas narcísicas, estão deprimidas e no brincar há um confronto com a emocionalidade. É preciso pôr os adultos a brincar para os pôr a brincar com os seus filhos! Têm que se redescobrir e redescobrir os seus potenciais criativos. Os pais de hoje em dia vivem com uma culpabilidade que os atormenta: de que se sentem mal-amados, de que não estão a dar o melhor aos seus filhos, fazem programas daquilo a que chamo de ilusionismo, de entreter os afetos!
Como podem então os pais aproveitar o pouco tempo que têm com os filhos?
Devemos ter cinco minutos de tempo com os nossos filhos de descobertas, sem brinquedos, não que tenha nada contra, acho que até faz parte! Penso que acima de tudo há um problema de falta de amor, por isso é que as pessoas estão deprimidas. É porque lhes falta amor. Aos oito meses, os bebés são especialistas em descrever estados afetivos. Se quiser saber mais sobre uma pessoa ponha um bebé de oito meses à sua frente, que ele diz-lhe tudo! (risos) São detetores da nossa afetividade. E se veem, por exemplo, alguém, de quem gostam muito, deprimido, dão gargalhadas para tentar mudar o seu estado emocional.
Como se deve brincar com a criança?
As pessoas são emocionalmente diferentes. Cada uma age à sua maneira. É importante transformar as tarefas (como o banho, as refeições) em momentos relacionais com o filho. É interessante que os pais se questionem sobre o que leva a determinadas tarefas sejam mais difíceis e como podem transformá-las em “momentos”. É bom dar liberdade e espaço ao outro para chegar lá por si. Já pensou contar uma pequena história antes de levar o seu filho à escola? Já pensou na ideia de todos os dias de manhã ir ver o sol com o seu filho? Se não sabe como brincar, pergunte ao seu filho! As crianças têm esta facilidade de cooperação! Perguntamos tudo a toda a gente e aos livros, e esquecemos quem são os protagonistas: os filhos. Podemos mesmo dizer “Filho, não sei brincar. Ensinas-me?”. Os pais têm sempre uma referência na sua infância que vão buscar! Não há regras.