Há crianças que dizem frases completas aos oito meses, mas há também a história do menino que chegou à escola aos sete anos sem saber ler e que depois se revelou um verdadeiro génio em várias áreas do conhecimento. Uns crescem equilibrados e maduros, outros mais centrados neles próprios e um pouco isolados. São “diferentes” e muito dotados. Se aprenderem as emoções e a brincar com os outros meninos, o mundo será deles.

Num sábado de manhã, em plena Primavera ventosa e muito fresca, as crianças começam a chegar ao espaço que a ANEIS, Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação, reservou numa instituição de ensino em Lisboa. O relógio já bateu as dez, e os meninos e meninas recém-chegados, vão-se espalhando pela sala, explorando cada canto, segundo os seus interesses e vontades. Enquanto um pequeno grupo de rapazes se junta em redor de uma mesa, colocada ao fundo da sala, onde se encontram peças de madeira de um jogo de montagens e combinações, Isabel, com apenas cinco anos, entretém-se longamente a pintar fotocópias de fotografias suas, realçando os olhos, a boca, as sobrancelhas, retratando-se, através das pinceladas, em inúmeras expressões.

Na sala, as crianças são acompanhadas por estagiárias que vão apoiando e acompanhando as brincadeiras. Sara Baía, Psicóloga Educacional, professora universitária, investigadora e uma das fundadoras da ANEIS, vai orientando o grupo ainda disperso, que não está completo neste sábado, talvez porque algumas crianças já começaram as férias da Páscoa. Dos 13 habituais frequentadores, apenas seis ou sete vieram hoje, à sessão de sábado, único dia da semana em que se juntam já que nos outros, cada um frequenta a sua escola e não há tempo para encontros extraescolares.

A dificuldade de integração é um ponto importante em todo o processo porque os sobredotados não conseguem que os seus pares se interessem pelas suas conversas ou partilhem os seus interesses e preocupações.

Todos diferentes

Enquanto uma estagiária leva um grupo de meninos para outra sala, onde irão brincar às máscaras, Sara Baía vai discorrendo sobre a vontade que a levou, juntamente com outros especialistas na matéria, a concretizar a dinâmica da ANEIS, uma iniciativa que visa complementar, pelo enriquecimento de interesses e conhecimentos, a educação escolar destas crianças “diferentes”. Sara, como lhe chamam carinhosamente as crianças, não gosta de rótulos, ou seja, evita usar a palavra sobredotado porque pensa que mais importante do que classificar uma criança “é a compreensão das suas características”.

Afinal, se de uma forma geral a diversidade de características é imensa em cada um de nós, estas crianças, que representam 3 a 5% da população, são definitivamente diferentes dos outros. Compreendê-los e aceitando que têm “necessidades educativas especiais”, possibilita que se lhes dê apoio especializado. Mas comecemos pelo princípio: o que leva a identificar estas crianças como diferentes e especiais? Trata-se fundamentalmente de uma questão de desenvolvimento, explica a psicóloga. “Estas crianças têm um desenvolvimento diferente, normalmente em termos cognitivos, em termos de valores e de capacidade de reflexão sobre questões mais filosóficas ou mesmo espirituais”. Ou seja, a sua “compreensão do mundo é diferente das crianças da sua idade”, o que as leva, desde logo, a sentirem “alguma dificuldade em se integrarem no seu grupo de pares”.

Integração e competências sociais

A dificuldade de integração é um ponto importante em todo o processo porque os sobredotados não conseguem que os seus pares se interessem pelas suas conversas ou partilhem os seus interesses e preocupações como “a crise económica, por exemplo”. Uma criança que reflecte sobre a crise económica aos oito anos acaba por afastar os seus colegas de escola porque estes simplesmente não acompanham nem se interessam por tais questões.

E daí a rejeitá-los, é um passo, consequência que não só é “dura e lhes dá mal-estar, como, por outro lado, impede-os de desenvolver competências sócio emocionais tais como interagir e ouvir o que os outros têm a dizer”. Não têm esse treino. Posto isto, desenvolver a amizade com outras crianças é difícil, assim como “desenvolver a capacidade de superar obstáculos”, o que se prende de muito perto com o factor “persistência” Porque os sobredotados estão habituados a resolver todos os problemas com muito sucesso, no dia em que não o têm, desistem rapidamente da tarefa, a não ser que esses problemas façam parte do seu núcleo de interesses.

Neste quadro, a aquisição da autonomia é também parte importante no processo: “são muito autónomos no seu domínio de conhecimento mas não desenvolvem suficientemente a autonomia noutras áreas”. Explicando melhor, estas crianças têm tendência a não seguir outros modelos de conhecimento que não sejam o seu, ou seja, “não têm respeito nem humildade suficientes pelo conhecimento dos outros, o que os impede de seguir determinados modelos teóricos”.

As pessoas que têm indicadores de sobredotação na idade adulta, conseguem dominar vários tipos de conhecimento ao mesmo tempo e não são hiper-especializados.

Sara Baía

Psicóloga

Com o tempo, acabam por perder com isso. “Conforme se vai avançando na escolaridade e no conhecimento, os colegas amadurecem e começam a diversificar interesses, e querem saber cada vez mais”. Por esta altura, as crianças identificadas como sobredotadas “não conseguem competir com os seus novos concorrentes”, ou seja, “os que não tiveram concorrentes até uma certa altura, irão ter, mais tarde, alguma dificuldade em competir com os outros” diz a psicóloga.

Por outro lado, a hiper-especialização numa única área “cria uma certa rigidez em termos cognitivos”, e não é por acaso que “as pessoas que têm indicadores de sobredotação na idade adulta, conseguem dominar vários tipos de conhecimento ao mesmo tempo e não são hiper-especializados”, explica Sara Baía. Significa isto que alargaram os seus campo de interesse, interessaram-se por outros domínios de conhecimento, ouviram os outros e tiveram humildade suficiente para respeitar o seu pensamento, o que lhes abriu a porta para outros mundos que não aquele em que durante algum tempo foram reis e senhores, surpreendendo tudo e todos.

Confronto com o mundo

Nesta dinâmica complexa que envolve o mundo da sobredotação interligam-se, como já vimos, uma série de factores. Os meninos sobredotados na infância “sabem tudo”, resolvem todo o tipo de problemas, “têm conhecimentos surpreendentes sobre os mais variados assuntos, deixam os outros abismados com o seu saber”. Esta admiração tende a torná-los demasiado centrados em si próprios, o que por só por si, é um factor que os prejudica. Além disso, “esta valorização exacerbada que promove a imagem do sábio e admira o raciocínio científico, não os deixa desenvolver as suas características pessoais, e as pessoas admiram-nos pelo que sabem mas não pelo que são”, sublinha Sara Baía. A escola valoriza muito este domínio e eles “são conotados como sendo excessivamente racionais”.

Acabam também por ter algumas dificuldades ao nível dos afetos, mas a verdade é que isto se deve “ao facto de eles não terem a mesma oportunidade que os outros têm, em termos do convívio social”. E voltamos à questão inicial: sentimento de rejeição, falta de interação emocional, auto-centramento, falta de humildade e de respeito pelo conhecimento dos outros, dificuldade na competição. No entanto, mais tarde ou mais cedo os sobredotados vão ter que se confrontar com o mundo real, quando crescerem e tiverem que enfrentar os desafios próprios da vida. Terão que desenvolver características como a persistência, saber ouvir os outros, saber convencê-los e comunicar as suas ideias, “coisa a que não se habituaram”.

Daí a necessidade de uma intervenção atempada que os leve a desenvolver ferramentas sócio emocionais, essenciais numa maturação equilibrada que lhes permita beneficiar, no futuro, das suas imensas capacidades cognitivas. Acrescente-se que quando estas competências não são desenvolvidas, a sobredotação pode ficar comprometida, o que se concretiza, como a investigação tem demonstrado, “na falta de correlação significativa entre a sobredotação na infância e a sobredotação na idade adulta”. Daí a afirmação de António Castelló, investigador e teórico nestas áreas, de que só se pode falar em sobredotação a partir dos 13, 14 ou 15 anos, altura em que a inteligência cristaliza e se acede ao pensamento operatório segundo Piaget.  

Um rapaz de 10 anos, disse á mãe: finalmente conheci alguém que já leu os mesmo livros que eu.

Sara Baía

Psicóloga

Aceleração ou enriquecimento

Dois grandes modelos teóricos têm sido postos em prática no sentido de apoiar as crianças sobredotadas: o modelo da aceleração e o do enriquecimento. O primeiro, “procura que elas avancem anos de escolaridade, tendo sido revelado por estudos realizados em Portugal que estas crianças reagem bem e parecem ficar mais motivadas, embora nada indique que haja desenvolvimento das competências sociais”. Quanto ao enriquecimento, centra-se no alargar de interesses e expansão da criatividade, palavra-chave cujo potencial o meio geralmente não costuma promover.

A ANEIS, que tem delegações em todo o país, promove programas de enriquecimento fora do contexto da escola mas também dentro dela, como é o caso da delegação do Vale do Tâmega. Este enriquecimento procura desenvolver nas crianças sobredotadas o seu potencial criativo de uma forma que favoreça a aplicação do seu conhecimento. Em Lisboa, o programa “está vocacionado para as expressões artísticas como as várias expressões plásticas, o teatro, a escrita, além do desenvolvimento sócio emocional, o que é comum a todas as delegações” e que, pela sua importância, “acaba por ter a primazia face á criatividade”, explica sara Baía. Dos instrumentos usados neste processo, o debate em grupo sobre vários temas é primordial, mas também são feitos jogos, dinâmicas de grupos, tutorias, partilha, propostas de tarefas “em que procura que os miúdos trabalhem em grupo, e onde cada um tem um papel diferente”.

Uma das preocupações centrais neste programa é que “cada um espera a sua vez para falar e que cada um seja ouvido”. Este é, claramente um ponto sensível a ser trabalhado, uma vez que estas crianças têm dificuldade em lidar com isto. Por outro lado, é muito valorizada a interacção entre eles. “Apesar de terem dez minutos de intervalo ao longo da sessão, quando vejo que estão tão bem a brincar uns com os outros e o fazem de forma muito espontânea, deixo-os ficar meia hora, porque é disso que eles precisam”. Muitas vezes jogam futebol, “que é uma coisa que geralmente não fazem na escola, porque nem sempre os deixam jogar”. Mas aqui todos jogam, todos intervêm.

Amigos e debates

Nas sessões de sábado, muitas crianças encontram, finalmente, um grupo de pares, “como um rapaz de 10 anos, que quando aqui chegou pela primeira vez, disse á mãe: finalmente conheci alguém que já leu os mesmo livros que eu”, coisa que no meio dele não conseguia encontrar. Entretanto, os interesses em comum vão aproximando uns dos outros. “Há dois amigos que sabem tudo sobre naves espaciais e astronomia, e que ficaram tão unidos que passam fins-de-semana em casa um do outro”. Outros ainda, “loucos por bionichals e gormitis, passam a vida a trocar desenhos e ideias, mandam e-mails um ao outro durante a semana”. Mas há também aqueles “que se sentem ameaçados pelos colegas, pela competição, que é uma coisa que se procura desincentivar”. Daí, a necessidade de recorrer à colaboração em grupo, levando-os a “que resolvam problemas em conjunto, que construam coisas”.

Em cada ano, há um tema escolhido para o debate que domina todas as sessões, embora esses mesmos debates possam surgir de alguma coisa que os interesse particularmente, como aconteceu com a “anulação do rali Lisboa-Dakar”. Nesse dia chegaram muito agitados, e Sara Baía deixou que falassem á vontade sobre as vantagens e as desvantagens da anulação. “O mais engraçado é que no dia seguinte, quando li o jornal Público, encontrei lá todos os argumentos que eles tinham esgrimido no dia anterior”. E assim foi durante uma semana inteira, “todos os canais de televisão e jornais confirmaram esses mesmos argumentos”, conta Sara Baía.

O abecedário da China

Neste ano, em particular, o tema para debate recaiu nas emoções, que assumem um papel central na orientação do grupo. Todos os sábados, as emoções são trabalhadas de diversas formas, sendo o seu reconhecimento um passo essencial no processo, assim “como a compreensão dos contextos em que as emoções surgem”. As abordagens ao tratamento das emoções são muitas, desde um jogo “em que eles próprios vão contando pequenas histórias acerca das emoções, à forma como se podem transformá-las – que não é mais do que a promoção da auto-regulação – assim como pequenas dramatizações, execução de máscaras com determinadas expressões faciais, construção de marionetas, etc”.

Todos os anos é feita uma peça de teatro escrita por todos, e “este ano resolvemos fazer um laboratório das emoções”. Muito se passa nesta sala, ela própria um verdadeiro laboratório de transformações. Chegado o momento do debate todos se sentam numa roda de cadeiras, e as crianças vão falando e respondendo a perguntas, como por exemplo “O que é ser arrogante?”, a que se seguem rapidamente as respostas. Alguém levanta o dedo e diz “é uma pessoa que quer dominar os outros”, para logo outro responder “alguém que gosta de se gabar”, e outro ainda “o que tem a mania que é bom”, até à mais surpreendente, que surge de António, “um sobredotado de seis anos mas muito bem integrado na escola e em todo o lado”, que dispara: “é alguém que diz: eu sei o abecedário da China e ninguém mais sabe”.

A sessão termina e os miúdos correm para o pátio. Um deles, lança a ideia do “combate em câmara lenta”. Fingem que se agridem mas sem se tocar, muito devagar, como uma dança oriental, e eles rebolam no chão a rir, como crianças que são.   

O QUE É A SOBREDOTAÇÃO

Tradicionalmente, a sobredotação prendia-se com habilidades cognitivas (QI) e era avaliada recorrendo-se aos testes de inteligência. Nos dias de hoje, apesar de não existir consenso, a maioria dos autores aceita uma definição mais alargada que inclui múltiplas áreas de capacidade e actividade humana. Desta forma, a  ANEIS integra os seguintes domínios no conceito de sobredotação:

Aptidão Intelectual – inclui capacidades de percepção e memória, de organização e relacionamento da informação, de análise e de síntese, de raciocínio e de resolução de problemas.

Aptidão Académica – reporta-se à facilidade nas aprendizagens, mormente curriculares, nível aprofundado de conhecimentos ou ritmo acelerado de apropriação das matérias escolares num ou mais domínios curriculares.

Aptidão Artística – traduz as habilidades superiores numa ou várias áreas de expressão, tais como a pintura, escultura, desenho, música, literatura ou teatro, por exemplo.

Aptidão Social – habilidades de comunicação e de relacionamento
interpessoal, compreensão dos sentimentos dos outros (ajuda) ou organização e liderança de situações de grupo (liderança).

Aptidão Motora – inclui a excelência a nível de coordenação e expressão motoras, nomeadamente ao nível das actividades físicas e desportivas em geral.

Aptidão Mecânica – habilidades de compreensão e resolução de problemas técnico-práticos, envolvendo geralmente manuseio de esquemas, de conceitos e de equipamentos de índole mecânica, electrónica ou computacional.