Cada um ocupa o seu lugar na família, cabendo aos pais cuidar do amor que os une, pelo seu bem e pelo bem dos filhos. O que é garantido é que as dinâmicas afetivas vividas dentro da família são, como se sabe, o berço de todas as outras relações.

A criança que nasce e cresce a sentir que os pais gostam um do outro, que partilham um afeto sincero e profundo, que são cúmplices e amigos, tem fortes probabilidades de se sentir, pela vida fora, suficientemente segura, tranquila e protegida quando enfrentar as dificuldades e os desafios que a vida lhe irá inevitavelmente trazer. Numa família, quando os pais se amam e respeitam, é certo e sabido que as crianças irão beneficiar fortemente desse capital amoroso. Bons modelos de amor parental dão estrutura e tranquilidade aos filhos, verdadeiras esponjas a absorver os benefícios de um ambiente harmonioso. Em consequência, sentir os filhos felizes e equilibrados é uma fonte de prazer para os pais. É como um círculo em que tudo está ligado, ou como um puzzle em que cada peça encaixa na outra. Alguém dizia que a vida das pessoas felizes não tem história, e de facto, assim acontece. Para muitos de nós, o tempo dos bebés, das fraldas, do choro e do riso das crianças, dos seus primeiros passos, das papas, das idas ao jardim é, felizmente, o tempo das melhores memórias apesar dos cansaços, das noites mal dormidas, das febres e das tosses a meio da noite, dos primeiros dias na creche, e por aí fora.

Vida, etapas e ajustes

Será que é mais importante destacar a qualidade do amor entre os pais, ou privilegiar o afecto e a atenção que eles dedicam aos filhos? Por outro lado, será que viver apenas em função do equilíbrio e bem-estar dos filhos corre o risco de descurar a relação dos pais? Na verdade, não se decide nada sobre estas questões. Todos agimos inconscientemente, ou seja, se quisermos perceber o que nos está a acontecer, é importante parar para nos observar e questionar.

Importa salientar um fator importante: o amor e as relações afetivas ocupam, de facto, um lugar fundamental na nossa vida, mas estão sempre em mudança, em atualização, são muito dinâmicas. Nem o amor conjugal, nem o afecto que nutrimos pelos nossos filhos são processos estáticos, parados e cristalizados no tempo. Mudam e interagem entre si. Cuidar de ambos, do amor entre o casal, e da atenção e do carinho adequado que se dá aos filhos, não é tarefa fácil, pede ajustes constantes e exige aprendizagens diárias. Em resultado desta interacção complexa, vamos desenhando a vida à medida que ela acontece. Algumas coisas, porém, são relativamente previsíveis. Quer isto dizer que adultos e crianças atravessam inevitavelmente e em paralelo, etapas próprias do desenvolvimento e da maturação. Vivemos ciclos de amor, de maturidade, de crescimento e de adaptação a mudanças constantes. Por vezes há desencontros, nomeadamente quando em certas alturas nos sentimos menos disponíveis para os filhos ou com menos disposição para avivar o romance entre o casal.

A previsibilidade das crises

Não há uma segurança eterna nem um lugar em que fiquemos a salvo, para sempre. Na verdade, tudo tem um tempo de nascimento, amadurecimento e morte, que é o tempo em que as relações se desenvolvem, revelam e modificam para dar lugar a novas situações e novas realidades, o que mostra, desde logo, que a estabilidade não é coisa que dure eternamente. Estar vivo, justamente, é aprender a viver com uma certa dose de instabilidade e incerteza, saber lidar com a dor e com a alegria, com a preocupação e a frustração, mas também a valorizar os bons momentos, quando eles surgem.

Partindo do princípio que as crises e as mudanças são o sal e a pimenta da vida, cabe-nos conhecê-las e preveni-las o melhor que nos for possível. Assim sendo, é sabido que na vida de um casal, a maior e mais extrema mudança ocorre com o nascimento de um filho. Antes disso, predominava o estado de fusão entre os dois, e cada um espelhava o que de melhor existia no outro, mas o nascimento de um filho vem revelar uma dimensão mais profunda das nossas próprias maneiras de ser, fazendo com que se manifestem, no casal, novos traços das suas personalidades, forças e fraquezas, vulnerabilidades e virtudes, reacções a imagens inconscientes que cada um transporta da sua própria infância.

O menino que dorme no berço

Esse menino é um novo espelho que reflete tudo o que o que o pai e a mãe vão vivendo, devolvendo-lhe essas imagens, reflectindo o que cada um viveu e que em parte estava esquecido, mas que começa a entrar em acção através dessa mobilização de sentimentos e afectos mais profundos. Por outro lado, a mudança radical de situação, com todos os cuidados e preocupações que implica, provoca ansiedade, o que vem desestabilizar a tranquilidade estabelecida.

Desde logo, descem os níveis de disponibilidade maternal: numa situação normal de vinculação entre a mãe e o bebé, o pai passa para segundo plano durante algum tempo. Mas numa circunstância saudável, esse tempo de simbiose entre a mãe e o bebé deve ser vivido nas melhores condições, após o qual o amor e a cumplicidade que dantes havia entre o casal, irão ser repostos lentamente. A desenho do amor entre os dois apresentar-se-á com um novo “rosto”, é certo, mas ultrapassada a primeira crise um e outro terão terão oportunidade de reinventar o amor que os une.

Quando o pai ou a mãe dedicam aos filhos um amor exclusivo e preocupado, num sacrifício que dá tudo e não pede nada, pode estar a negar a frustração de uma relação amorosa, enquanto casal.

Amor criativo

Uma história de amor é complexa. Pela sua natureza fundamentalmente criativa, o amor desenvolve-se melhor quando é multiplicado, partilhado e estimulado por outras relações. Assim, como se diz acima, a mobilização profunda dos sentimentos e emoções do homem e da mulher que são pais ilumina os “cantos” escuros do seu mundo interior e enriquece a suas personalidades, diversifica os seus comportamentos.

Por outro lado, os filhos ensinam-nos a dar, a cuidar e a partilhar, desenvolvendo em nós a prática da generosidade e da empatia que não é mais do que a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de sentir na nossa pele a sua dor, medo e insegurança dos nossos filhos. Ficamos mais “humanos” quando aprendemos a acolher esses sentimentos, ajudando-os a verbalizar o que sentem, a ultrapassar obstáculos, frustrações, desilusões e insucessos. O prazer de nutrir e cuidar de alguém que nos ama sem reservas nem limites e que nos faz sentir, como nunca, a doçura da intimidade e da proximidade, acrescenta um sentido único à nossa vida.

O casal em fusão

Geralmente, não temos a consciência da razão das nossas dinâmicas amorosas. Decorrem de questões fundadoras da pessoa que somos. Há casais que vivem um para o outro, profundamente devotados, relegando os filhos para lugar mais secundário. Fazem-no por várias razões que se prendem com a história de cada um. Em termos gerais, é certo que, quando um casal vive fechado em si próprio, tendo como prioridade alimentar esse mundo que é só deles, isso suscita nas crianças um sentimento de rejeição, de existirem à margem de um mundo a que não pertencem. Pode causar-lhes eventualmente algum sentimento de abandono, de falta de atenção, de exclusão de um mundo que lhes é vedado, mas muita coisa depende das circunstâncias.

A cumplicidade cruzada do pai da mãe com um dos filhos é suscetível de compensar em certa medida a exclusão sentida pela criança. Da mesma forma, a criança pode ligar-se a outras figuras que façam parte da família, como os avós, o que compensa eventuais sentimentos de abandono.

Para compensar o desamor

No sentido oposto, quando o pai ou a mãe dedicam aos filhos um amor exclusivo e preocupado, num sacrifício que dá tudo e não pede nada, pode estar a negar a frustração de uma relação amorosa, enquanto casal. Muitos pais, sobretudo as mães, fazem-no inconscientemente como forma de compensação. E as crianças eventualmente ressentem-se por aguentar o peso de uma afeição que não deveria ser-lhes dirigida em exclusivo, podendo carregá-las de culpa e ansiedade. Intoxicadas por esse amor ambíguo e sufocante, as crianças vivem essa inquietação e insegurança de várias formas.

Podem desenvolver um modelo errado de relação que mais tarde irão transportar para as suas próprias vivências afetivas, com sentimentos de insatisfação, dificuldade em dar e receber amor, com dificuldade em encontrar quem apazigue a sua eterna “fome” de amor insatisfeito. Tudo é variável, nada é totalmente previsível. Mas a ideia que prevalece é a de que as melhores memórias da nossa infância incluem a imagem dos nossos pais juntos, da sua proximidade e cumplicidade, das suas longas conversas, do prazer com que se entregavam à sua relação. São a fundação ótima para os alicerces da nossa vida.    

Sugestões para os pais

No livro “O amor que Cura”, da autoria de Boris Cyrulnick, neurologista, psiquiatra e psicanalista, é desenvolvida a história eterna que gira em torno do amor do casal, e de como este amor pode fortalecer a vida, através dos inúmeros recursos que semeia. Fala de resiliência, um conceito desenvolvido nas últimas décadas, e que trata do desenvolvimento da capacidade de resistir aos obstáculos da vida, sem deixar de acreditar no amor. O segredo está na figura do “tutor de resiliência”, pai, mãe ou figura cuidadora que cria um laço profundo com a criança, permitindo-lhe que construa a sua vida com fé e determinação. 

Outro livro aconselhado é “No Coração das Emoções das Crianças”, de Isabelle Filliozat, psicoterapeuta especializada em análise transaccional e mãe de dois filhos. Fala sobre a importância de ter a “inteligência do coração”, que nada mais é do que saber amar, ouvir, olhar e compreender as crianças. “Os filhos ouvem o inconsciente dos pais”, diz a autora, assegurando que o que mais importa são as reações dos adultos e não tanto o que eles dizem.   

“Babies”, série da Netflix em que são relatadas as últimas investigações sobre as importância e qualidade das interações do bebé com o pai e com a mãe desde que nasce.