Joana tem uma doença rara. Apesar das limitações, a família encontra sempre novas formas de lidar com esta realidade.
Patrícia Lamúrias

A história desta família começa como muitas outras.  Raquel e António conheceram-se no trabalho, apaixonaram-se, casaram e três anos depois tiveram a primeira filha.

Joana nasceu no dia 29 de fevereiro de 2004, Dia Mundial das Doenças Raras, mas, na altura, nada fazia suspeitar da coincidência.Até aos três anos, o desenvolvimento de Joana decorreu de forma normal. Com a entrada para o pré-escolar, a mãe começou a reparar nas diferenças relativamente às crianças da mesma idade. “Notava-se um atraso na fala e no raciocínio lógico, uma hiperatividade muito grande, falta de concentração, impulsividade. Além disso, tinha infeções recorrentes, nos ouvidos, na garganta, infeções respiratórias. Foi uma odisseia de médicos, psicólogos, terapeutas e exames à procura de uma explicação. Surgiram muitas suspeitas, mas os sintomas eram sempre vistos de forma isolada e não se chegava a nenhuma conclusão

Só aos seis anos receberam o diagnóstico definitivo e devastador:
Síndrome de Sanfilippo.

Raquel Marques

Mãe da Joana e da Sofia

Só aos seis anos receberam o diagnóstico definitivo e devastador: Síndrome de Sanfilippo. Uma doença genética, que causa danos cerebrais irreversíveis, sem cura ou tratamento, e com uma curta esperança de vida. “Nunca tínhamos ouvido falar na doença e nem o neuropediatra tinha a certeza se havia tratamento. Disse-nos que não via uma criança com esta síndrome há sete anos. A nossa primeira reação foi tentar perceber ao máximo a doença e que tratamentos existiam. Telefonar para todos os sítios que nos pudessem ajudar, em qualquer parte do mundo”.

Encontraram um centro de neuro-desenvolvimento em Nova Iorque que seguia muitas crianças com Sanfilippo e decidiram ir lá a uma consulta. “Os médicos explicaram–nos tudo o que podíamos esperar de forma exaustiva e sem rodeios. A Joana foi connosco e esteve o tempo todo muito agitada, era Natal, Nova Iorque estava toda enfeitada… Foi tudo de uma dureza extrema”, lembra Raquel. “Essa consulta mudou a nossa vida. Percebemos a complexidade da doença. E não estávamos à espera de algo tão grave”.

Quando regressaram a Portugal, Raquel ganhou novo fôlego e lançou-se na aventura de criar a Associação Sanfilippo Portugal.

Mas foi também nessa viagem que conheceram pessoalmente outra família com uma criança com o mesmo diagnóstico. “Foi muito bom conhecer a Jill. Além de saber imenso sobre a doença, ela tinha acabado de criar uma associação para dar a conhecer a doença de Sanfilippo e senti-me muito inspirada”. Quando regressaram a Portugal, Raquel ganhou novo fôlego e lançou-se na aventura de criar a Associação Sanfilippo Portugal, uma organização sem fins lucrativos que tem como missão apoiar a investigação, divulgar informação e ajudar famílias nos novos diagnósticos.” Neste momento, a associação tem um site bastante informativo, emite newsletters, organiza conferências, angariações de fundos e apoia regularmente algumas famílias no pagamento das terapias. “A associação dá muito trabalho, porque faço quase tudo sozinha, mas é também recompensador perceber o impacto nas pessoas e ver o interesse nas doenças raras aumentar”.

O mundo de Sofia

Enquanto Raquel e António viviam no meio da avalanche de angústias e receios em busca de um diagnóstico, nasceu a Sofia. Joana e Sofia têm cinco anos de diferença e são as melhores amigas. “A Sofia enche-me de orgulho. É muito amiga da Joana, compreende-a como ninguém. Anda sempre connosco nos eventos da associação e isso dá-lhe ferramentas para lidar com a doença da irmã. Conhece outros irmãos de crianças diferentes e indigna-se com as pessoas que têm atitudes negativas em relação à deficiência”. Recentemente, a Sofia surpreendeu a família, contribuindo de uma forma muito original para a divulgação da síndrome de Sanfilippo: compôs uma música e escreveu um livro sobre a irmã, com a ajuda dos professores da Escola de Música e Artes que frequenta. A música tornou-se o hino da Associação Sanfillippo Portugal e os direitos vão ser cedidos a algumas associações internacionais da doença.

A Sofia enche-me de orgulho. É muito amiga da Joana, compreende-a como ninguém.

Raquel Marques

Mãe da Joana e da Sofia

O livro, que se chama “A minha vida com a minha irmã”, conta episódios da vida diária da família, em verso, num conto infantil educativo e cheio de sensibilidade. “Tanto a associação, como o livro, que é uma edição de autor, são coisas que nunca me imaginei a fazer e é bom ter este tipo de experiências. Tenho conhecido pessoas muito interessantes, desde novos amigos, outras famílias, a médicos e investigadores”, conta Raquel. É nestas surpresas que a família vai ganhando forças para superar os muitos desafios que a doença da Joana lhes coloca. “A Joana tem fases mais calmas e fases mais agitadas. Nas fases agitadas, pode passar dias inteiros sem dormir. É desesperante. Fica às voltas no quarto e temos de fazer turnos para estar com ela. Precisa de ajuda para comer, para ir à casa de banho. Às vezes, não se deixa vestir, não quer colaborar com nada. Durante o dia vai à escola, está numa unidade específica para alunos com necessidades especiais, no 9º ano, à espera de entrar num CAO (Centro de Atividades Ocupacionais), mas as listas de espera são infinitas”.

Estou sempre a pensar no que posso fazer a seguir. Porque à medida que ela cresce, a doença agrava e há menos respostas.

Raquel Marques

Mãe da Joana e da Sofia

Raquel e António são engenheiros e trabalham a tempo inteiro. Entre a gestão da vida familiar e as iniciativas ligadas à Associação Sanfilippo, sobra-lhes pouco tempo livre. Têm família perto, mas nem sempre os conseguem ajudar. “É difícil alguém ficar com a Joana sem sermos nós, porque ela é muito exigente, principalmente nas fases mais difíceis”. O futuro de Joana é uma preocupação constante: “Estou sempre a pensar no que posso fazer a seguir. Porque à medida que ela cresce, a doença agrava e há menos respostas. A Sanfilippo provoca demência infantil, que é um assunto muito pouco falado”.

Ao encontro da felicidade

Arranjar escapes para fugirem do “caos men-tal” que a doença da filha mais velha provoca é outro desafio: “Tentamos fazer algum exercício físico e ter momentos de meditação, mesmo que seja complicado. Mas não é suficiente. Sinto muito a falta de ter tempo só para mim”, lamenta Raquel.

Quem vê esta família de fora não imagina os obstáculos que vence todos os dias. De fora, vê-se apenas uma família calorosa e unida. Raquel justifica: “Como casal, dividimos todas as tarefas e responsabilidades. E existe uma grande compreensão entre todos, muita entreajuda e muito amor. Fomo-nos habituando gradualmente a esta realidade e funcionamos como um relógio sincronizado, cada um sabe o que fazer”.

Temos alguns momentos que são um pouco embaraçosos, mas que aprendemos a rir deles.

António Vicente

Pai da Joana e da Sofia

E ao longo deste percurso singular foram encontrando a sua felicidade. “Temos alguns momentos que são um pouco embaraçosos, mas que aprendemos a rir deles. Por exemplo, uma vez estávamos num restaurante à espera de mesa e um empregado passou com comida numa bandeja e a Joana serviu-se e começou a comer. Ou na fila para comprar pipocas, no cinema, a Joana chega-se à frente e começa a tirar pipocas. Outra vez, estávamos na fila do supermercado, a Joana já estava a ficar farta de esperar porque o senhor da frente estava a demorar muito, então tirou-lhe o cartão da mão e deu à senhora da caixa para pagar. Acabamos por encarar estas situações com boa disposição e depois rimo-nos sempre”.

A Joana mal ouve a música começa a dançar e contagia todos. As pessoas dançam à volta dela, nós dançamos também e é um momento em que todos nos divertimos.

Raquel Marques

Mãe da Joana e da Sofia

Outros momentos ficam guardados na memória apenas por serem simples e leves: “Costumamos passar férias no Algarve e quando saímos da praia, ao final da tarde, há um bar que faz festas. A Joana mal ouve a música começa a dançar e contagia todos. As pessoas dançam à volta dela, nós dançamos também e é um momento em que todos nos divertimos”. E é como se fossem uma família igual a muitas outras.