A praia
Independentemente do tipo de «escolaridade» que nos espera (provavelmente um misto do presencial e online), há algumas questões sobre as quais creio ser útil refletir:
Haverá momentos mais gratificantes que os do retorno à natureza?
Enterrando os pés na areia, entrando no azul do mar e alargando a vista até onde este se confunde com o horizonte…
Haverá momentos mais gratificantes que os do convívio entre pais e filhos na orla branca da espuma, recolhendo tesouros de conchas ou erguendo um castelo para as sereias?
Caminhando sem rumo por caminhos molhados de encantamento e liberdade …
Tenho frequentado a praia ao longo de três gerações e sempre encontrei nela o mesmo fascínio apesar de tantas e tantas mudanças. E antevendo este verão, ainda mais diferente, dou por mim a recordar as férias que passava em criança.
Tínhamos então três meses por nossa conta e fazíamos uma verdadeira mudança, com armas e bagagens, para a Costa da Caparica.
Alugada uma camioneta, carregávamos frigorífico, roupas de cama, tachos, bicicletas, brinquedos. Seguia-se uma aventurosa viagem de barco, num ferry acompanhado pelos golfinhos que então povoavam o Tejo. De Cacilhas rumávamos, por estradas ínvias, até à velha casa. Mas o que nos entusiasmava era a praia, com os seus barcos enormes, com olhos pintados na proa para descobrirem os segredos do oceano.
Alugada uma camioneta, carregávamos frigorífico, roupas de cama, tachos, bicicletas, brinquedos. Seguia-se uma aventurosa viagem de barco, num ferry acompanhado pelos golfinhos que então povoavam o Tejo. De Cacilhas rumávamos, por estradas ínvias, até à velha casa. Mas o que nos entusiasmava era a praia, com os seus barcos enormes, com olhos pintados na proa para descobrirem os segredos do oceano.
Entrávamos então no mundo dos pescadores que, enquanto descansavam da faina, estendiam as redes no areal para as consertarem. Como nós gostávamos de conviver com eles, de ir à hora certa ajudá-los a puxar as redes! Hoje tal trabalho (se ainda o há) é realizado por tratores, dantes dependia do esforço cadenciado de muitos braços…
Que tempos esses! Só que, para os viver- mos, o meu pai se sacrificava a vir toda a semana para a capital trabalhar…
A praia era o lugar de reencontro com os amigos de verão, sempre dispostos a entrar em aventuras e brincadeiras, amigos que depois perdíamos até ao ano seguinte porque moravam longe e não havia telemóveis.
Tomavam-se banhos de mar com regras estritas, não nos afastando do banheiro, sempre atento aos remoinhos e agueiros que podiam arrastar-nos para longe. Os mais audazes adoravam furar as ondas gigantes e os miúdos ficavam à beirinha de água a admirá-los, aguardando pelos dias de calmaria em que podiam flutuar com boias improvisadas de pneus…
Faziam-se jogos de bola, corridas (com tanto espaço livre!) e campeonatos do jogo de prego. Apanhava-se marisco para o jantar. Os mais dados às artes iam-se treinando a moldar figuras, o que lhes serviu mais tarde para o concurso das “Construções na Areia “, em que eu própria vim a ganhar alguns prémios.
Mas havia certos momentos que catalisavam todos os garotos. Um era o pregão diário do vendedor de umas maravilhosas bolachas, chamadas barquilhos, que antecederam as bolas de Berlim.
Outro momento inesquecível mas bem mais raro era o aparecimento do teatrinho de fantoches. Dois pobres artistas armavam o teatro e entravam lá para dentro com os bonecos.
– Quem quer barquilhos? Quem quer experimentar a sorte?
Corríamos, em bandos, com uma moeda na mão, até à grande caixa de lata vermelha com uma roleta em cima. Acionávamos a roleta e víamos o que nos calhava. 10? 5? 4? Só 1? Alguns explodiam de alegria, outros de desilusão com o que lhes coubera, mas não havia melhor petisco no mundo…
Outro momento inesquecível mas bem mais raro era o aparecimento do teatrinho de fantoches. Dois pobres artistas armavam o teatro e entravam lá para dentro com os bonecos. As peças, bem primitivas, eram sempre anima- das com muita discussão e pancadaria entre os fantoches , e raramente faltava uma tourada em que um touro bravíssimo atirava pelo ar o novilheiro fanfarrão, com mil aplausos dos mais pequenos. No fim, os espectadores deixavam o que quisessem ou pudessem numa cestinha que um cão rafeiro segurava na boca.
De longe em longe ouvia-se um apito metálico, que constituía o chamamento do Catitinha, o anjo da guarda de todas as crianças. Tratava-se de um velho de barbas brancas, vestido de preto, a rigor, que teria sido jurista e assistira ao atropelamento da única filha. Com o des- gosto enlouqueceu e passou a dedicar a vida à proteção de todos os meninos. Mandava parar os carros para eles atravessarem, à beira mar cuidava da sua segurança, ralhava aos pais refilões ou distraídos. Contava-nos histórias e apertava-nos a mão com tanto carinho! Todos queriam tirar fotografias com ele porque era uma espécie de Pai Natal de Verão.
O cabo do mar, carrancudo polícia de bons costumes, rondava a ver se havia pessoas que fugissem à decência. Os homens não podiam andar em troco nu e as senhoras tinham de usar fato de banho com saia, que era medida por eles com uma fita métrica. Quem infringisse a lei pagava multa.
Mas a nós, crianças, o que nos afligia era o peixe aranha. Havia anos em que mal aparecia, outros em que se man- tinha escondido por baixo da areia, pronto a picar-nos os pés. Só quem teve o azar de o pisar avalia a dor que um ser tão pequeno e aparentemente inofensivo pode causar. O remédio, então, era só um: o que os pescadores preconizavam:
– Urinem em cima da picada, que isso passa!
E o pobre atingido, uivando de dor, acabava por ceder, com nojo, ao conselho.
Outros tempos…
Ora agora contem lá vocês como estão a ser, este ano, as vossas férias.